terça-feira, 9 de outubro de 2012

O que um cavaleiro faz à noite 2

    Estava quente. Era difícil até pensar nestas palavras quando se está em um barco. À noite. Talvez fosse a armadura. É, talvez. Dormir com a mesma, de uns tempos pra cá, havia se tornado imprescindível. Já que inimigos brotavam e se escondiam em cada esquina.

    "No mar não há esquinas", me deixei pensar, como uma certa companheira cigana vociferaria contra mim, em nossas periódicas "aulas de etiqueta". Difícil imaginar que um cavaleiro precisasse disso. Mas uma vez que passei a ser a "voz pública" do grupo, algum tato social tornou-se necessário. Muita coisa mudou...

    A armadura pesava mais a cada dia. Talvez não fisicamente, talvez fossem coisas da minha cabeça. Ultimamente o fardo vinha me sufocando. Me dei o luxo de retirá-la. Dormir seria impossível. Com ou sem ela, mas meu corpo jazia fatigado de tanto esforço com a mesma.

    O primeiro passo no convés me disse imediatamente que as roupas que escolhi não eram grossas o suficiente para o frio do mar. O calor proveniente da armadura logo se dissiparia ao vento.

    O horizonte distante ainda não trazia sinais da manhã iminente. Deixei-me divagar. Sobre mim, sobre meus companheiros, sobre meu irmão. Descobri que está vivo, nada mais.

    As mãos começaram a tremer a algum tempo, não sabia se era o frio ou a condição das mesmas. Tantas batalhas empunhando espada e escudo contra inimigos que não querem só a minha cabeça ou a de meus amigos, e de alguns eles infelizmente conseguiram. Não seria exagerado dizer que querem o mundo todo.

    E para que eu lutava? Para ver meu país cair nas mãos da Organização Mitternacht? Mal sabia se o solo onde nasci ainda estava lá, e o mais breve pensamento sobre isso doía e obliterava qualquer chance de obter algum sono.

    Sono. Acho que até dele, eu tinha medo agora. Incontáveis sonhos sobre sangue. Sobre a morte de cada um de meus familiares. Atrocidades da guerra. Lembrava que meu pai as vezes acordava assustado e gritando à noite. A guerra também o tinha quebrado. Nunca deixando-o esquecer.

    O vento frio me trazia de volta ao deserto. Que em suas noites me mostrou o quanto de frio um homem pode sentir. E não era pouco. A única coisa que nos esquentavam eram as batalhas. Emboscadas no meio das dunas, na calada da noite. Vidas tiradas em um sussurro. A dos inimigos, claro. Éramos fortes, destemidos, e sempre alertas. Éramos imortais.

    Até a cabeça de Ronan rolar no chão, perto de nossos pés. Tão rápido como um pensamento, a vida do nosso amigo se esgotou, assim como nossa ilusão de imortalidade. Junto com o sangue vermelho forte, veio à tona nossa incapacidade. Como éramos jovens. Jovens tolos, que pensam que podem salvar o mundo.

    A vida de Ronan significou mais do que a morte de um companheiro, significou a morte da nossa inocência. Talvez não naquele instante. Mas cada um de nós à seu tempo, percebeu o quão ínfima é a vida. Nós amadurecemos, apenas para que mais vidas fossem jogadas em nossas costas. Para que mais sangue corresse sobre nossas mãos. Para que mais reinos caíssem, caso não tenhamos sucesso.

    É responsabilidade demais... Pensei, sentindo quase que fisicamente o peso. Estava encostado em um dos "muros" do convés, ao ouvir aqueles delicados pés se aproximando. Se ouvi, foi porque ela queria que ouvisse.

    - Olá, Megan...

    - Seus passos não são nada silenciosos, Atem... - Disse a loira, colocando em meus ombros um manto grosso, que acolhi rapidamente. Não me daria ao luxo de perder algum dedo por gangrena. Exagero.

    - É difícil serem, quando tenho uma vida usando aquela armadura... - Esboçou um sorriso triste.

    Olhar para a garota lembrou-me de vários momentos que passaram juntos. Já fazia muito tempo. Daquela boca, saíam as lendas do nosso grupo, lendas que ganharam o mundo, e fizeram de nós pessoas temidas. Ou procuradas. Para uma cigana, ela corria muitos riscos estando conosco.

    - Porque você luta?... - Indaguei, sem olhar para a mesma, vislumbrando as ondas quebrarem.

    Surpresa com a pergunta que aparentemente saíra de lugar algum, ela prontamente respondeu:

    - Que graça tem nesse mundo se não lutarmos? - Suspirou o ar salgado - Nenhuma história nasce da inércia...

    - O que quer dizer?... - Agora sim virando-me para ela.

    - Quero dizer que se você não vive, se você não age... Você está morto antes do seu coração parar de bater... - Ela sorriu, como se estivesse falando a coisa mais simples do mundo.

    - Assim como as histórias morrem, se não forem contadas - Ela continuou - pessoas morrem, se não fizerem nada significativo de suas vidas... Estou tentando pôr em miúdos pra você... Não sei se absorveu alguma coisa de nossas aulas - Ela riu - Mas para mim, estamos vivos no conhecimento das pessoas... Na boca daqueles que contam nossas histórias e no imaginário daqueles que as ouvem...

    - E o Ronan? E todos aqueles que morreram no meio dessa jornada?...

    - Ronan vive... - Disse com um sorriso, para o meu espanto - A cada vez que contam a história do caçador que cutucou um buraco de inseto com a ponta de uma flecha... - Riu, lembrando da história - Ronan vive... Assim como todos os outros vivem nos relatos de suas batalhas. Nos contos de suas bravuras. Nos testemunhos de seus embates.

    Histórias que carregariam um símbolo, que moveriam montanhas, mesmo enquanto histórias. Contos de uma guerra histórica. Contos com significado, imbuídos de memórias que deveriam nunca ser esquecidas.

    Talvez fosse verdade. O breve pensamento conseguia deixar o peso em meus ombros mais leve. Suas vidas não foram em vão, e é por elas que serão lembrados. Enquanto estivermos em busca de salvar nossa terra, nenhuma morte foi em vão. As dores existirão, mas não o pesar, apenas o sentimento de saudade, daqueles que fizeram possível estarmos aqui, carregando esta missão.

    De repente este fardo não é tão pesado assim, se temos todos estes alicerces. Essas pontes, que nos trouxeram aqui. Que nunca serão esquecidas. Que nunca morrerão...

    A garota ia voltando ao interior do navio, quando falei:

    - E quanto a você?... Que conta as histórias?...

    - Ninguém se lembra de quem conta as histórias...

    - Pois eu trataria de contar as suas histórias, senhorita cronista...

    - Eu tratarei, cavaleiro... Para que possamos ser imortais mais uma vez...
     

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Write.

Queria escrever.
Mesmo sem assunto determinado.
Desisti do idiótico texto metalinguístico que se desenrolava.
Tinha inveja da época onde fortes emoções adolescentes se tornavam combustível para os mais diversos (porém mais iguais) textos.
Lembro do amigo, que com sua sagacidade contava incríveis histórias dos anti-heróis mais impressionantes que já vi. Conseguia, com seu sarcasmo afiado, colocar um sorriso em meu rosto mesmo nos tempos mais adversos.
Lembro da amiga, que escrevia seus sensuais textos sobre a vida noturna. A sensibilidade incorporada conduzia as baladas ébrias em devaneios tocantes, onde qualquer um podia perde-se.
Lembro do amigo, que escrevia com a boca. E que conseguia me encantar enquanto eu lia com os ouvidos suas melodias envolventes, que nada deviam àquelas somente do papel. Ele fazia com que qualquer uma poesia no papel quisesse virar música.
Lembro da amiga, que com seus textos amortecia as dores de seus relacionamentos e esperanças. E com amor, tecia inenarráveis contos românticos. Era o adjetivo que caberia, se eu mesmo não os tivesse lido.
Lembro do amigo, que com seu intenso conhecimento construía os mais fabulosos e elaborados universos. Fabulosas histórias de homens e mulheres que nunca viveram desenrolavam-se naquela imaginante cabeça.
Lembro da amiga, que apesar da recorrência de crianças sofrendo em suas histórias, consegue com maestria retratar os laços e tropeços daquela família que se escolhe. Me fazendo lacrimejar mais do que deveria.
Então lembro de mim.
O que sei fazer no meio de tantos amigos talentosos?
Mentir.
É.
Acho que vou voltar para aquele texto metalinguístico.


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Singela homenagem aos meus amigos escritores, também àqueles não descritos. Compensando os dias do escritor que se passaram. Ou não.
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